Brasil sulino

Brasil sulino

Brasis Sulinos: gaúchos matutos e gringos

Parte 4 Capitulo 6 da obra de Darcy Ribeiro: O povo brasileiro

A expansão dos antigos paulistas atingiu e ocupou também a região sulina que era de dominação anteriormente espanhola e a incorporou ao Brasil. A interação com diversas formas de influência originou uma área cultural tão complexa que não pode ser relacionada como componente da Paulistânia, diferentemente de outras áreas conformadas pelos paulistas como a de mineração, da economia natural caipira e na cafeicultura que mesmo com suas diferenças econômico-sociais tem entre si uma base cultural comum. Na região sulina a principal característica comparando com outras regiões culturais brasileiras é sua heterogeneidade cultural. Três complexos na formação do Brasil sulino irão se destacar, primeiro a grande quantidade de açorianos vindos de áreas pertencentes a Portugal e ocupando a faixa litorânea do Paraná em direção ao sul, segundo, os representantes atuais dos antigos gaúchos das regiões de campo da fronteira rio-platense e por último somando-se a estes a formação gringo brasileira dos descendentes de imigrantes europeus que formam uma ilha na zona central avançando sobre as duas outras áreas.

A interação destes três complexos caminha ativamente a homogeneizá-los difundindo e compartilhando traços e culturas de um para o outro. O Brasil sulino surge principalmente em decorrência dos jesuítas espanhóis onde estes criaram um raro modelo utópico de reorganização intencional da vida social que efetivamente viabilizaram novas formas de existência humana.

O modelo criado se caracterizava pelo grande responsabilidade social diante das populações indígenas que aliciavam, diferente da formação colonial escravista que tratava o índio como uma fonte de energia para ser consumida na produção mercantil, o modelo jesuítico buscava fundamentalmente se desenvolver e produzir para sua própria subsistência, contudo duas características tiveram efeitos inesperados, de um lado a grande eficácia em destribalizar o que atraía rapidamente para esses núcleos missioneiros milhares de índios e de outro sua eficácia econômica na produção de artigos para os mercados regionais e externos permitindo assim as missões manter um ativo intercâmbio comercial por meio do escambo para possuir tudo o que não podiam produzir.

Mais com essa grande concentração de indígenas deculturados, uniformizados culturalmente e motivados para o trabalho disciplinado, desencadeou toda a fúria dos mamelucos paulistas que viam as missões como um grande deposito de índios facilmente preáveis. Desta forma se liquidaram as primeiras missões pois com a escravização dos catecúmenos e sua venda aos engenhos açucareiros do nordeste, e por outro lado o êxito mercantil das novas missões e seu caráter de modelo alternativo a colonização em curso provocou invejas e cobiças locais e também na própria metrópole desencadeando a expulsão da companhia de Jesus.

As missões contribuíram formidavelmente para a formação do brasil sulino, tanto como deposito de escravos exportáveis ou subjugáveis com os quais se constituiu uma população subalterna local, como na formação dos primeiros gaúchos que serviria de mão de obra para a exploração mercantil das vacarias.

Porém o motor fundamental da formação do Brasil sulino foi a empresa colonial portuguesa, conduzida desde muito cedo com o propósito de levar sua hegemonia até o rio da prata. Este propósito inicialmente buscado pelos bandeirantes pela conversão dos índios em escravos, estabelecendo assim o primeiro circuito mercantil transbrasileiro se fortaleceu com o instalação da colônia do sacramento no rio da prata. No século seguinte o projeto português esteve seriamente ameaçado por falta de viabilidade econômica já que a exploração do gado selvagem para a exportação do couro e de sebo era feita principalmente pelos colonos das áreas de dominação espanhola levando os núcleos sulinos para sua orbita de influência.

A ameaça porem foi superada com a constituição do novo e rico mercado da região mineira para o gado em pé, bois de carro, cavalos de montaria e muares de tração e de carga. Os índios escravos do século xvii e o gado do século xviii sendo que ambos podiam se locomover-se a si próprio por mais longa que fosse as distancias deram ao extremo sul condições de se vincular-se com o norte e com o centro do Brasil, mais com o esgotamento da região mineira novamente estava ameaçado o progresso sulino. Porem com a introdução pelos cearenses da técnica do Fabrício de charque que além de valorizar os rebanhos gaúchos o vinculou ao mercado nordestino e ao amazonense e posteriormente ao antilhano.

A integração econômica da região sul do Brasil se alcançou como se vê através da criação de sucessivos vínculos mercantis que a uniram mais com o restante do país do que com províncias hispano americanas vizinhas. Porem todos estes vínculos não seriam suficientes para garantir uma completa incorporação se além deles não operassem outras forças de unificação, destacando-se a política portuguesa de potência deliberada a levar sua hegemonia ao rio da Plata seja através da manutenção da colônia do sacramento seja pela colonização da área com imigrantes açorianos. Além disso a postura portuguesa dos luso-brasileiros do extremo sul frente a postura “castelhana” esta auto identificação se vê reforçada mais ainda porque estava associada as disputas hegemônicas das suas coroas, assim cada estancieiro se definia claramente de um ou de outro lado, defendendo a bandeira escolhida fazendo de sua estancia sua trincheira, apesar de todas estas forças integrativas várias vezes teve de se apelar ao uso das armas para manter o brasil sulino atado ao brasil.

O poder central do Brasil teve também de fazer frente e se submeter pelas armas dos movimentos aspirantes a autonomia da região, estes muito mais vigorosos e instrumentados que de outras áreas. Somando-se a isto a circunstância de viver apartada do resto do Brasil e submetida a influencias intelectuais e políticas de centros urbanos culturalmente mais avançados como Monte Videu e Buenos Aires. Nestas condições não poderiam deixar de surgir aspirações de independência inspiradas na concepção de que o sul melhor realizaria suas ações como um país autônomo do que como um estado federado, motivados por vezes por ideários políticos arrojados, como as lutas antiescravistas e a campanha republicana dos farrapos.

A condição de fronteira do Brasil sulino fazendo concentrar ali a maior parte das tropas do país, conferiu um poderio maior ao Rio Grande do Sul no conjunto da nação no que corresponderia a sua importância econômica, tornando dessa forma inevitável a imposição de candidatos gaúchos ao poder central quando a escolha exorbitava dos meios institucionais para ser decidida por considerações militares.

A formação histórica dos gaúchos brasileiros é comum a dos demais gaúchos platinos surgem da transfiguração étnica das populações mestiças de varões espanhóis e lusitanos com mulheres guarani. Especializaram-se na exploração do gado alçado e selvagem que se multiplicava prodigiosamente nas pradarias naturais das duas margens do rio da Plata. Desta forma os índios da região acabam por se fazer cavaleiros e comedores de carne de rês.

Com isso é importante ressaltar três fatores na formação da economia gaúcha; primeiro a existência do rebanho de ninguém sobre a terra de ninguém, segundo a especialização mercantil na sua exploração e por último o grau de europeização de uma parcela mestiça deste contingente que a fazia carente de artigos de importação e capaz de estabelecer um sistema de intercâmbio para trocar couros por manufaturas, a documentação histórica indica que estes gaúchos falavam melhor o guarani do que o espanhol, sendo desse modo culturalmente próximos dos paulistas dos séculos xvi e xvii e dos paraguaios modernos em sua linguagem, em seu modo de adaptação a natureza para o provimento da subsistência em suas formas de associação e sua visão de mundo.

Essa matriz guarani é que basearia a etnia gaúcha, que multiplicando-se vegetativamente e “guaranizando” outros contingentes, povoou a campanha e veio a ser depois a matriz étnica básica das populações sulinas. Posteriormente essa matriz se dividiu para atrelar-se ás entidades nacionais emergentes, como argentinos, uruguaios, paraguaios e brasileiros.

Originalmente estes gaúchos não se identificavam como espanhóis nem como portugueses, da mesma forma com que não se identificavam como indígenas, constituindo a partir disso uma etnia nascente aberta a agregação de contingente de índios destribalizados pela ação missionaria ou pela escravidão, de novos mestiços de brancos e índios desgarrados pela marginalidade e de brancos pobres segregados de suas matrizes. Esses eram os gaúchos originais, uniformizados culturalmente pelas atividades pastoris, bem como pelo idioma falado, costumes e usos comuns, tais como: o chimarrão, o tabaco, a rede de dormir, a vestimenta caracterizada pelo xiripá e pelo poncho, as boleadeiras e laço de caça e de rodeio, a tralha de montaria e pastoreio feita de couro cru, o consumo de sal como tempero, da agua ardente e do sabão e utilização de artefatos de metal, a faca de carnear, esporas e freios.

Após o período convulso de guerras externas e de lutas de unificação nacional que conflagram os campos rio-platenses, as estancias brasileiras entraram em uma fase de relativa tranquilidade. Neste contexto o crescimento da charqueada valoriza o gado sulino e industrializa sua exploração, fazendo do pastoreio cada vez menos uma aventura e cada vez mais um negócio racional. Porem a charqueada introduz na paisagem pastoril uma atividade nova, caracterizada pelo trabalho de ritmo intenso e controlado pelo horário e obrigações bem definidas, o que não estava acostumado o gaúcho campeiro, com isso se introduz o negro escravo sendo a mão de obra do tempo para todo trabalho de gastar gente. Essas comunidades de saladeiros com empregados e escravos contrastando flagrantemente com a estrutura social da campanha, constituíram um enclave pré-industrial que se ampliaria no futuro através de novas técnicas como matadouros e frigoríficos, se constituindo assim como o novo centro da atividade pastoril.

 

Autor: Damarci Geffer